quinta-feira, julho 22, 2010

Negro.

(ou Pois já está na hora/mimos pra sereia/naquela noite/muita paz e esmeraldas/mesa num canto/La distancia y el silencio/até pra morrer/lágrimas negras.)


Começa o show e estou a frente de dois percursionistas. São os dois negros e tem olhos negros, sem branco, e como duas estátuas suas mãos acoitam seus tambores. As peles dos atabaques respondem e vibram, e com elas todo o ambiente vibra junto. Seus olhos continuam completamente negros, tão hiperdilatados que parecem não me ver, não me vêem, mas me atravessam sem que ao menos foquem em mim. Parecem olhar através do meu corpo, para além do meu corpo a me ver dançando os significados daquelas músicas. Nesse momento não tenho mais onde me esconder.

O cantor, um gigante louco germânico, continua dançante, inebriado em palco, e parece cantar para mim, também sem olhar. A falar das minhas estórias e dores continua a dançar e sorrir. Mesmo sendo estórias e dores dele também. Eles entendem completamente tudo que se passa em mim e a indiferença deles para os nossos sentimentos compartilhados me diz muitas coisas, me ensinam tantas outras. Passo a sorrir com eles.

Lembro de certas passagens e lembro-me de meu corpo vibrar. Realmente vibro e é como se a música pudesse tocar a mim como a um instrumento, a definir as notas certas para tudo aquilo. É uma mistura das próprias músicas e das letras que me conduz, cada uma a me agarrar por um braço e a me levar. Deixo-me ir quando sinto que "podría perderme en esta felicidad". Nesse exato momento.

Os atabaques continuam hipnóticos e intensos, as letras sussurram docemente a mim por horas; crianças e choros, rosas no mar, o que pesa e o que flutua, a paz e as esmeraldas. Sussurram e cantam intimamente ao meu ouvido, sussurros e canções que são pensamentos meus, musicados, bem cantados, muito bem interpretados. O tempo esta parado, dando tempo suficiente para apreciar cada palavra, nota e gesto. Mesmo quando tudo termina o relógio continua parado. Como um lago que continua a ondular depois do fim do vento continuamos, dançamos e fazemos nosso show. Até que não tenhamos mais força para ondular. Um olha para o outro e reconhece nele tudo que se passou consigo, ainda que de formas diferentes. Estou no lugar certo, no momento certo, com certeza ouvindo as palavras certas. Um mundo de significados e compreensão se abre, é o que penso naquele momento. Ao me dar conta de mim volto do infinito e vejo ao meu lado meus amigos e uma garota. Nessa noite fantástica é bem capaz que tenha sido assim; foi o que vi naquele momento.

3 comentários:

  1. "um ode ao ego".

    de fato, esse show do otto tocou a cada um de nós.

    muito bom; demonstras evolução.

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  2. Já te disse, e registro: meu preferido.

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  3. muito bom mesmo!!! parabéns!! foi um show muito especial e você conseguiu transcrevê-lo de uma forma incrível.

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