quarta-feira, outubro 20, 2010

Velho.

ou Ode à Fúria.



Sou ódio e pura aflição hoje.

Já são muitas noites. Essa, ordinária como tantas, não é diferente. Raiva. Aflição pura.

Sinto o peso dos anos sobre mim e estou velho. Antes dos trinta sinto um cansaço terrível, uma intolerância gigante, uma solidão negra. Depois de tão pouco tempo já não tenho mais saco e, hoje, hoje mesmo, não há nada que me renove o bom humor. Dia feio, inútil e degradante.
O sofá roubou de mim todas as forças e estacionei, escorrendo entre as almofadas como chorume preto e contaminando a vida lentamente, me espalhando em seu giro de 24h.

O ódio se assoma, cresce e pulsa. A solidão se instala como Aids. Minha raiva progride.

Puro ódio e aflição de tanto desencontro. Tanta partida sem sentido, essas rupturas incompletas de ligações diretas como de ladrões de carros batendo fios e fugindo desesperadamente do lugar onde o roubo teve início. Aflição dos olhos que não se encontram, propositalmente se desviam para o cansaço e o trabalho, e vivem a não ver a semelhança do outro, a mesma dor. Desses juízes e seus dedos em riste na minha cara, suas morais que caem sobre mim como seus martelos, suas sentenças cuspidas sem qualquer amor. Ódio da comunicação podre, um telefone-sem-fio imenso emaranhado em compreensões rasteiras, puro resgardar de si e medo.

Em pedaços volto para casa, para caverna lamber minhas feridas. Igual a ela é o caminho: quilômetros de frio, escuridão e uma garoa gelada, covarde e pequena. O caminho já o conheço a muito e continua com o mesmo sabor, um quadro claro da minha vida. Frio e um incômodo me perseguem o trajeto todo, a garoa escorre sobre mim e ameaça entrar por todas as frestas. Sem defesas contra seu ataque incessante ela entra, a tensão se aloja. Diminuo a cada quilômetro. Me apequeno cada vez mais. Definho e sem forças observo o caminho e guio mecanicamente, a moto me leva e vou escondendo minha consciência fundo onde a chuva e o frio não a possam alcançar. Meu corpo fica em tormento, torturado por essas facas frias líquicas que o tocam. Sem pressa o penetram lentamente. Tendo todos as milhas que precisam chegam aos ossos, os arranham, inscrevem neles sua marca de dor e lamento.

O tempo move o caminho: rua vazias, mortos de frio, alguns de fome e outros da água venenosa que cai do céu. Todos de violência. As luzes iluminam as ruas com sua pestilência, deixam tudo amarelo como um morimbundo. A degradação que se encena acena com um aviso: esse é o seu caminho!

Estaciono. Me levanto da moto e sinto escorrer água por dentro de mim. Pedaços de asfalto, pneu e lixo descem pelo meu peito, sujam meu coração.

Já no banheiro me olho no espelho, tomo coragem e me encaro, olhos nos olhos. Angústia. Outrora eu era um rosto bonito, moreno, um sorriso alegre, uma completa enganação. Agora apareço. Tenho a sujeira da rua na cara, os dentes pretos e serrilhados de remoer minhas dores, a pele grossa, olhos injetados de tanta fúria. O espelho me reconhece e sorri para mim. Meu lema ali escrito foi a muito apagado. Me desespero.

Passo a noite debaixo do chuveiro. A sujeira incrustada em mim encharca, amolece, tinge a água e não me solta. Pela manhã ainda permaneço sob o banho, já sentado no chão tenho a pele enrugada, as costas arqueadas, pernas tortas e vacilantes.

Estou velho e morrendo.

6 comentários:

  1. Você insiste em percorrer sempre o mesmo caminho.
    Há lugares onde a chuva não é fétida. Há lugares onde se pode andar de moto e não ficar impregnado de lixo.
    Reveja seus itinerários. Especifique novos roteiros. Há muitos caminhos para se andar.

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  2. podemos escolher: viver morrendo ou morrer vivendo; envelhecer rejuvenescendo ou nos tornarmos zumbis da vida adulta até a (mundana) morte.

    (modesta e) psicanaliticamente, esse texto representa um bom traço de nova fase e/ou recomeço.

    parabéns!

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  3. Eu reli o meu conselho. Desculpe. Há caminhos em que andamos por pura e lúcida escolha. Independente do lixo, da chuva ou da escuridão.
    Como uma boa música onde a letra e a base tem que ser boas nos caminhos ocorre o mesmo. E a harmonia somos nós que compomos.
    Batizo este texto com o codnome de Ode à Fúria

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  4. Ah! você sempre entendeu muito bem mãe. Mesmo com o seu medo. É isso que admiro!
    O batismo está feito.

    Sanches, eu escolho todas as escolhas. Nunca me dei bem com ou´s e até de zumbis eu gosto. Mas entendi o recado. Obrigado pelo parabéns, não mereço mas fico feliz em recebe-lo.

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  5. O caminhar pelas trevas da solidão é duro. Muitos banhos ainda virão, e você se baterá de frente com a descoberta da diferença entre solidão e solitude. O navegar pelas águas da solitude é calma e reflexivo, as vezes ruim, as vezes bom. Mas todos nós travamos nossa "Guerra dos 300 de esparta" internas, porque só depois das dores e sofrimentos vividos na guerra é que realmente aprendemos e começamos a valorizar o que está ao nosso redor. No meu caso, lutei a Segunda Grande Guerra Mundial, lá morri e renasci. Mas que uma coisa fique clara, os seus 299 companheiros de batalha sempre estarão ao seu lado, velhos ou novos.

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  6. Caberia um "Para ler ouvindo: http://youtu.be/Vg1jyL3cr60"

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