quinta-feira, maio 01, 2014

Céu


O senhor conhece a historieta do soldado que diz, observando o companheiro morto diante de uma trincheira: olhem lá, ele é o mais valente de todos, está deitado sob o fogo das metralhadoras, olhando tranquilamente o céu.

terça-feira, agosto 13, 2013

A dama do mar.


Ela cresceu selvagem e linda em um farol no mar. Filha do faroleiro. A mãe era... Melancolia. Acabou a vida num hospício. Depois o pai se afogou. Ele também era estranho.

Sabe como são as jovenzinhas, cheias de sonhos e expectativas, mesmo as que foram bem educadas. E essa menina... com esse passado! Ela ficaria à beira-mar e deixaria seus sonhos deslizarem sobre as ondas.

Minha dama do mar. Prometi tomar conta dela. Ficar com ela. Cuidar dela. Ela veio morar comigo. Longe da água. Aceitou ser minha esposa. Mas não consegui acabar com seus devaneios.

*

As focas, na verdade, são pessoas que, por vontade própria, se lançaram no mar e se afogaram. Todo ano, na Noite de Reis, elas podem vir à costa e tirar suas peles de foca. Ficam iguais a qualquer pessoa.

Até o amanhecer, quando devem retomar a forma de foca, elas dançam e brincam nas rochas e grutas perto da praia. Fazendo de conta que são humanas de novo. Como elas se divertem.

Havia um garoto numa fazenda em Milkladalur que ouvia pessoas dizerem que, na Noite de Reis, as focas se reuniam em uma praia não muito distante da vila. Então, naquela noite, ele foir lá ver se era verdade. Escondeu-se atrás de uma rocha na frente de uma gruta. Quando o sol se pôs, ele viu focas virem nadando de todas as direções para onde ele estava escondido. Quando chegaram à costa, elas retiraram suas peles de foca e as deixaram sobre as rochas lisas, na praia. Ele mal podia acreditar em seus olhos. Elas eram exatamente como pessoas comuns.

Pessoas comuns! Gordas e magras. Velhas e jovens. Altas e baixas. Comuns, menos uma.

Foi então que ele viu a mulher mais bela de sua vida sair de uma pele de foca. Viu que ela colocou a pele em uma rocha próxima. O garoto rastejou até lá, pegou a pele e voltou ao seu esconderijo.

O grupo de focas dançou a noite toda, e, quando começou a clarear, elas voltaram às suas peles. A bela mulher-foca não conseguiu encontrar a sua e apertava as mãos e se lamentava, porque o sol estava prestes a surgir. Mas, um pouco antes que isso acontecesse, ela sentiu o cheiro da pele e implorou ao garoto que lhe devolvesse a sua pele de foca. Mas ele saiu andando, e ela teve que segui-lo o caminho todo até a fazenda.

Até a casa. Até sua cama.
Para fazer dela uma mulher comum. Para fazer de si mesmo um homem.
Ele a tomou como esposa. Ela o amava. Tiveram filhos. Ela amava os filhos, especialmente o primeiro, um menininho com estranhos olhos de um branco-azulado. Mas o marido tomava cuidado que ela não achasse a pele de foca. Ele a mantinha trancada em uma arca e sempre levava consigo a chave.

Um dia, ele foi pescar com os outros homens do vilarejo e, enquanto esperava com paciência o peixe fisgar a isca, sua mão roçou o cinto, no lugar em que costumava pendurar a chave. Qual não foi seu espanto quando percebeu que devia ter esquecido a chave em casa. Sufocado de aflição, ele gritou: "esta noite, não terei mais esposa." Remou de volta o mais rápido que pôde, correu para casa e, como imaginou, sua esposa havia partido.

As crianças estavam sentadas, tranquilas. Para que não se machucassem sozinhas em casa, a mulher tinha apagado o fogo e trancado as facas e objetos cortantes.

De fato, ela tinha achado a chave e aberto a arca e, ao ver a pele de foca, teve que pegá-la e, depois, correu para a praia, vestiu a pele e mergulhou no mar. É daí que vem o velho ditado: "Ficar tão desvairado quanto a foca que encontra sua pele."

Quando ela pulou no mar, seu companheiro-foca a encontrou e, juntos, nadaram para longe. Todos esse anos ele tinha esperado que ela voltasse para ele.

Quando os filhos que ela teve com o homem de Mikladalur desciam à praia, sempre se via bem perto da costa uma foca que os observava - e todos achavam que se tratava da mãe das crianças.

Como pode contradizer uma lenda?


domingo, maio 26, 2013

Chorou.



Dormiu bêbado e acordou cego. Quase tão mal quanto isso. Olhos inchados, selados de ramela.

Ao contrário do cego, a luz ele via. Demais. Opaca, através da pele queimava seus olhos. E como uma criança chorou 2 dias. Chorou tanto que dormiu. Chorou pelo olho que pendia da face, chorou pelo coração que pendia do peito, chorou de medo e solidão.

Acima de tudo chorou até ficar sem forças. Aquela que outrora tão grande, não precisou da morte para abandoná-lo.

terça-feira, maio 21, 2013

De casa.



Do pai queria lhe guardar a noite.
Da mãe, a companhia no fim da tarde.
De meu irmão iria correr entre as quatro linhas.

De mim, que poderiam querer?


sexta-feira, abril 12, 2013

Ensinamento não culinário.



- Como é que você faz arroz?
- Sem lavar. Como é que você faz?
- Eu não lavo. Como é mesmo que você faz???
- Sem lavar.
- E quem é que vai fazer?
- Eu.
- Então como é que vai ser feito?...

quarta-feira, março 13, 2013

Elevador.

8° andar.
Entra

sexta-feira, fevereiro 22, 2013

Outro dia.


Se levantara el sol en la mañana 
Y su luz suave me calentara
Lo malo pa'l atrapapesadilla
Decidi morirme otro dia.


quinta-feira, fevereiro 14, 2013

Espelho.

http://www.youtube.com/watch?v=5eTA24uMZwU

A noite em que eu nasci, senhor
Juro que a lua se fez vermelha de fogo
A minha pobre mãe gritou,
"Senhor, a cigana tinha razão!"
Eu vi-a cair morta logo ali.

As grandes aves da planície lá me encontraram esperando,
As grandes aves da planície lá me encontraram esperando e quando me encontraram,
Sentaram-me no dorso de uma delas que me levou para lá do infinito e quando me trouxe de volta,
Deu-me um anel de feitiçaria de Vénus e disse:
"Voa. Voa. Porque sou uma criança e tu bem sabes que eu sou uma criança."

As minhas flechas são feitas de desejos vindos de tão longe como as minas sulfúricas de Júpiter.
Sim, eu faço amor contigo,
E tu bem sabes, não sentiste dor
Sim, eu faço amor contigo enquanto dormes,
E tu bem sabes, não sentiste dor
Porque estou a um milhão de milhas de distância
E ao mesmo tempo,
Estou ali dentro da moldura com o teu retrato

Porque sou uma criança,
E tu bem sabes que eu sou uma criança.

Eu tenho um pássaro-mosca que zumbe tanto que pensavas enlouquecer.
Sim, eu flutuo em jardins líquidos,
E lá nas novas areias vermelhas do Alentejo
Provo o mel de uma flor chamada, melancolia
E as gentes afundam-se enquanto damos as mãos
Porque sou uma criança,
E tu bem sabes que eu sou uma criança.


sexta-feira, janeiro 25, 2013

Alteração.


O groove envolvia pesado. Gordo, escorria. Dançávamos. Cada um ao seu modo, todos dançavam.

Aquela pequena garota, tão parecida que era, sua pele branca, seios fartos, de cabelos negros que enquadravam um sorriso de canto, tinha uma marca no mesmo lugar.

Naquelas costas o símbolo era outro.
Uma rosa dos ventos lhe adornava o corpo logo abaixo da nuca. Magnética, prendia minha atenção como a um verso da música e me fazia pensar, quase sem perceber o pensar, para onde apontava meu norte?


quinta-feira, janeiro 24, 2013

Varanda.



A casa era um quadrado pequeno.

va        sala      quarto
ran              .
da        quarto   cozinha

v    a    r    a    n    d    a

Os cômodos se interligavam no centro da casa. Duas paredes onduladas separavam os quartos da cozinha e da sala em uma estranha arquitetura. Não havia muito conforto.

Permanecia-se  melhor do lado de fora. Ao menos havia um banheiro, um filtro de água e uma varanda grande, um corredor largo e telhado açoitado pelo sol, pela chuva e constantemente pelo vento.
Na mesa que havia ali passei muito tempo sentado com um velho senhor e muitas coisas ele me disse.

- Maldita miséria!

Bebia e fumava blasfemando contra aquela que o perseguia.

- Maldita miséria!

Já naquele tempo me ensinou que seria essa minha sina também. Ela estaria em tudo ao meu redor.
Cada trago que tomava, toda bituca que apagava era parte de sua luta contra e também aceitação deste fato.

- Como a morte e o amor, a miséria é expressão da vida.

Palavras bem ditas.


A verdade é tudo aquilo que o homem precisa para viver, não pode ganhar nem comprar dos outros.

Todo homem deve produzi-la sempre no seu íntimo, se não ele se arruína.

Viver sem a verdade é impossível, mas não exagere o culto da verdade.

Não há um único homem no mundo, que não tenha mentido muitas vezes e com razão.


Palavras quebradas IV.


Quando apenas restar a solidão, ainda haverão essas vozes na sua cabeça.

*

E, afinal, para que tanto papo? Se comunicar é coisa de quem não se entende.

terça-feira, dezembro 04, 2012

Tempestade.




Bebeu o oceano inteiro de seu dia triste.
Se teve sede novamente, não bebeu nunca mais. Tamanha miséria o havia inundado, teve medo.


sábado, setembro 29, 2012

Cara.


É claro que ia dar merda!
Quando ele a viu pela primeira vez teve certeza. -Vai dar merda!
Mas sabe como é... foi assim mesmo. Do único jeito que sabia.

Tinha de ser rápida a queda. Em um raio ia quebrar a cara no chão.



Pegou a bicicreta e desceu a Cardeal a toda velocidade que pôde. Rezando por sinais verdes no seu caminho.

Quando viu o vermelho já era de sua cara e dentes que arrastavam no chão.


sexta-feira, setembro 07, 2012

Flores e pássaros.



Quando você se for não restarão mais jasmins naquela árvore, seu perfume também não mais será sentido. Nunca mais haverão seios com tamanho perfume e beleza, tampouco chuva de flores na cama.

Haverá, contudo,  mais um pássaro vermelho, fugidio, cantando os amores esquecidos onde antes havia a mais linda das flores.

E como há de cantar esse pássaro...

sábado, agosto 11, 2012

Céu.



Mas que céu pode satisfazer seu sonho de céu?


sexta-feira, agosto 10, 2012

Troféu.


Jaula não o mantinha cativo. Empalhado ficou bem melhor na parede da sala. Lembrando das grandes caças e sem nunca mais desbotar.

quinta-feira, agosto 09, 2012

Decapitação.


Em meio a névoa um dia tentei escrever. Mas a mesma névoa que trouxe a tempestade a ser controlada em escrita a precipitou em um rio de margens indefiníveis. Hoje, no entanto, é garoa fina. Apenas assim para que eu possa permanecer sob ela sem inundar e afogar.

Até mesmo em meu próprio sangue. Pois quando chegaste, não pensara duas vezes em rasgar meu pescoço e levar minha cabeça. Me tiraste tudo e não deixara nada no lugar. Tu, tão bela. Sem escrúpulos algum me decapitas-te.

E antes da beleza do meu corpo, que pretendeu se exibir todo a você, esvair, no momento da separação em duas partes que nunca mais poderiam voltar a ser como antes, só então eu me desesperei ao pensar se não era você apenas o canto da sereia ou uma incrível fantasia que eu nunca mais voltaria a ver.

Antes que eu pudesse saber vi você partir e deixar as marcas de seus pés em meu sangue. Então meus olhos fecharam.

"Voraz e derradeira,
Consumiu minhas folhas à sua maneira,
Restaram meus espinhos e folhagens secas."


domingo, agosto 05, 2012

Soul.

She was Soul music, my friend.

Óh, ela era!

Em todo seu sofrimento, em toda sua dor. Era essa sua canção.

Éramos todas aquelas brigas, todas as partidas e despedidas que despedaçavam o coração. Chegadas, juras, canções gritadas de desculpas e perdões cantamos todas. Não mais que nossas noites úmidas, quentes e musicais, ou jantares de gala em que nos devorávamos, sequer mais que toda aquela distância solitária na cama.

Escorríamos um ao outro e não encontrávamos saídas para aquela mão que tentava agarrar água. Mas sentíamos o calor das gotas que permaneciam. Quentes, frescas, não permitiam o aparecimento das garras naquele toque tão macio. Garras que ainda não foram guardadas completamente.

Cantavam paixão e tristeza sempre, hora duo hora solo.

Ela era o amor real machucado e ferido, era também aceitação. Sua alma se via pelos olhos, rapidamente, a se mostrar e se esconder e deixar claro a mulher que é. Solidão e festa, companhia e ausência.

O Soul continua a tocar descompassado, como era próprio dele.


sábado, agosto 04, 2012

Risofoca.


http://soundcloud.com/robertaciconi/11-risoflora

Com dez braços me trouxe para você.
Sem estender uma mão não amparou minha queda.